Dilma engajou-se politicamente, foi às ruas, organizou resistência, enfrentou um governo tirano e ilegítimo. Mas quem disse que ela defendia a democracia?
Pétar Russév atravessou o oceano. Tinha um metro e noventa e cinco, olhos azuis, pele clara e uma aparência de nobreza, dessas misteriosas provenientes da região dos Balcãs, que entorpecia quem chegasse por perto. Era desses homens com ares de intelectual. Frequentava os principais círculos literários de seu país e era membro do Partido Comunista.
A Bulgária vivia tempos difíceis. Russév andava falido e temia as consequências de um governo duro com os membros do partido. Quando decidiu atravessar o oceano deixando Evdokia Yankova, sua esposa grávida de sete meses, no cais, prometeu voltar. Mas a cena jamais aconteceria. Luben Russév nunca teve a chance de conhecer o pai.
No final dos anos trinta, depois de um tempo em Buenos Aires, Russév estabeleceu morada no Brasil, com algum dinheiro no bolso. Começou a empreitar obras para a siderúrgica Mannesmann. Para fazer dinheiro, construía casas por conta própria e as revendia, sempre com bom lucro capitalista. Sua fama era de bom negociante. Fez o dinheiro render em pouco tempo. Numa viagem a trabalho ao interior de Minas Gerais conheceu Dilma Jane Silva, uma professorinha, filha de um pecuarista rico da região. Foi amor à primeira vista. Não demorou muito tempo e os filhos apareceram. Primeiro, Igor. Depois, Dilma. Por fim, Zana. Pétar Russév virou Pedro Rousseff e a história do Brasil jamais foi a mesma.
Os Rousseff moravam numa casa grandiosa, aos cuidados de três empregadas domésticas. As crianças conviviam com um imenso piano e uma professora particular, madame Vincent, que as visitava religiosamente para ensinar francês. Dilma teve uma educação de ponta – quando seu pai morreu, em 1962, deixou a família numa situação confortável, com cerca de quinze bons imóveis como fonte de renda. Aos 15 anos, quando trocou o conservador Colégio Nossa Senhora de Sion, onde as moças só falavam francês com as professoras, pelo Colégio Estadual Central, desabrochou. O Sion era um colégio de freiras exclusivo para meninas. Dilma era educada para debutar. Percebeu com a mudança, como diria tempos mais tarde, “que o mundo não era pra debutante”. Seguiu o caminho não tão incomum de moça prendada de classe média alta para o coração da esquerda revolucionária.
Foi no Estadual Central que recebeu de grupos de esquerda um texto pra ler, um livrinho chamado “Acumulação Primitiva”, um dos principais capítulos do “Capital”, de Marx. Não entendeu absolutamente nada, sequer se aquele barbudo alemão estava a favor dos trabalhadores. Mas era um primeiro passo. Quando ingressou na Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), os militares já tomavam conta do poder. A organização surgira como uma alternativa ao quase-monopólio que o Partido Comunista Brasileiro exercia na esquerda tupiniquim. O PCB sustentava que o caráter da revolução no Brasil era democrático e que a conquista do poder se daria através de uma revolução burguesa. A Polop, por outro lado, não acreditava na democracia liberal. Sua base era armada, revolucionária. Dilma lutava pela implementação de uma ditadura do proletariado no país, influenciada pelo incendiário livro “A Revolução da Revolução”, do marxista francês Régis Debray, que difundia o “foquismo” – a teoria da guerrilha de pequenos grupos, os focos, para expropriar e violentar a burguesia. As conversas do grupo giravam sempre em torno da revolução e exploração dos trabalhadores, embora “pobre, mesmo, não tinha muitos, não”, como lembra o atual governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, membro da organização. “Todos eram, pelo menos, de classe média”. Apesar de não ter abandonado o Minas Tênis, clube da elite mineira, a filha do meio dos Rousseff começava a ter seus passos rastreados pela polícia secreta, que apontava a Polop como uma organização “Marxista-Leninista que adota a linha violenta”, com um acervo composto por manuais dos “fuzileiros da infantaria”, de leitura de “cartas e fotografias aéreas”, para “manuseio de armamento”, de “técnicas usadas pela polícia” e de “fabricação de explosivos”.
A organização, dividida em relação ao método para a implantação do socialismo, logo concentrou-se entre os que defendiam a convocação de uma assembleia constituinte e os que faziam coro à luta armada. Dilma escolheu sem titubear a segunda opção, que se transformaria no Comando de Libertação Nacional (Colina) e, posteriormente, na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Em pouco tempo, virou professora e ensinou marxismo a operários militantes. Também aprendeu a mexer em armas. Ajudou na elaboração de três assaltos a bancos, assinou artigos no jornal Piquete (que circulava nos bairros operários de BH) e chegou à direção do Colina. Dividia com seus companheiros a luta pela instalação de um regime de inspiração soviética no país – que, há milhares de quilômetros, perseguia militarmente opositores, assassinando, torturando e aprisionando indivíduos que não concordassem com o regime.
Foi na VAR-Palmares que Dilma participou da preparação da mais espetacular ação da luta armada no Brasil: o assalto ao cofre do ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros. O cofre em questão era uma peça com mais de 200 kg, retirado da mansão onde vivia a amante de Adhemar de Barros, morto quatro meses antes, no bairro carioca de Santa Tereza. O valor? A monumental quantia de US$ 2,596 milhões, uma fortuna que corresponde hoje a mais de R$ 20 milhões. No dops, o depoimento era que o dinheiro ficou cerca de uma semana “em um apartamento situado à rua Saldanha Marinho, onde também morava Dilma Vana Rousseff Linhares”. Num dos inquéritos é dito que Dilma “manipula grandes quantias da var-Palmares. É antiga militante de esquemas subversivo-terroristas. Outrossim, através de seu interrogatório, verifica-se ser uma das molas mestras e um dos cérebros dos esquemas revolucionários postos em prática pelas esquerdas radicais. Trata-se de pessoa de dotação intelectual bastante apreciável”. Em outros relatórios, foi também chamada de “Joana D’Arc da subversão”, “papisa da subversão”, “criminosa política” e “figura feminina de expressão tristemente notável”.
Pouco tempo depois, Dilma acabou presa em São Paulo. Foi torturada por 22 dias com socos, pau de arara e choques elétricos. Passou quase 3 anos na prisão e teve decretado seus direitos políticos cassados. Saiu do Presídio Tiradentes quase dez quilos mais magra. Na sequência, decidiu mudar-se para o Rio Grande do Sul, onde exerceria os cargos de Secretária Municipal da Fazenda de Porto Alegre e Secretária Estadual de Energia, Minas e Comunicações. Eram os primeiros passos de sua trajetória por cargos públicos que a levaria à presidência da República anos mais tarde.
Passados décadas, o cenário é visto com outros olhares – a atual presidente viu seu passado militante tornar-se um expoente da luta pela pluralidade democrática. Ledo engano. Dilma engajou-se politicamente, foi às ruas, organizou resistência, enfrentou um governo tirano e ilegítimo, virou vítima nos seus porões, sofreu brutal violência nas mãos do Estado. Virou Stella, Wanda, Luiza, Patrícia, adotou outras identidades para se opor à violência institucionalizada. Apesar disso, é um erro cometer a automática associação entre opositores da ditadura com defensores da democracia, como se o mundo fosse um grande campo preto-e-branco, maniqueísta com suas duas perspectivas quadradas possíveis. Dilma defendia um modelo político-econômico que provou-se impossível de ser estabelecido longe da instauração de uma ditadura militar, nas dezenas de países que o testemunharam no último século. Aqui, a discussão era pela substituição de um regime fortemente repreensivo por outro de igual porte, embora com outros propósitos. Enquanto a atual presidente lutava para combater a ditadura brasileira, incontáveis jovens como ela organizavam-se para enfrentar regimes ainda mais brutais ao redor do mundo, sofrendo nas mãos de governantes vistos como edificadores por seu grupo, em regimes de partido único. A esses guerrilheiros, tudo que Dilma pode oferecer até aqui foi o silêncio – um silêncio ensurdecedor que ainda ecoa, agora também nas prisões dos opositores políticos venezuelanos.
Como dizia o velho Millôr, “democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim”. Assim tudo parece fazer sentido.
Fonte: http://spotniks.com/quem-disse-que-dilma-rousseff-lutou-por-democracia/