O Evangelho da Esposa de Jesus, assim Karen King, professora de Harvard, nomeou um suposto novo fragmento copta que ela mesmo tornou público na última terça-feira, em Roma, no Congresso Internacional de Estudos Coptas. Como não lembrar do Evangelho de Judas, cuja existência foi anunciada no mesmo Congresso, em 2004, por Rodolphe Kasser.
Ainda não conheço as medidas exatas do fragmento, mas uma foto dele pode ser visualizada numa reportagem do New York Times. O fragmento em questão tem oito linhas e nele podem ser lidas partes de frases atribuídas a Jesus potencialmente polêmicas como "Jesus lhes disse: 'minha esposa...'" e "ela será capaz de ser minha discípula...".
São muitas as questões a serem consideradas. Comecemos pelo anúncio feito por Karen King e a questão relativa ao fato de o manuscrito ser uma falsificação ou não.
Dois estudiosos que eu conheço muito bem, meu orientador ,Louis Painchaud, e o meu colega, Alin Suciu, estão em Roma no Congresso de Estudos Coptas e tiveram a oportunidade de assistir ao vivo à conferência da professora King. O professor Painchaud disse hoje de manha, via facebook, que King não pôde mostrar fotos do dito fragmento durante a conferência por problemas técnicos; segundo ela, seu computador havia pifado durante o vôo que a levou a Roma. Obviamente, a primeira reação dos estudiosos presentes foi pedir para ver o fragmento, o que só se tornou possível depois da conferência. A reação dos estudiosos presentes foi mais ou menos a mesma:
1- A caligrafia é extremamente peculiar e nenhum dos presentes jamais tinha visto esse tipo de escritura e letra num manuscrito copta;
2- A forma do fragmento e suas bordas não correspondem ao que se vê normalmente em um fragmento copta antigo; as bordas são muito regulares, o "corte" muito reto.
Vejam abaixo fotos de alguns fragmentos do Codex I de Nag Hammadi, do séc. IV. Comparem com a foto da reportagem do NY Times e notem as diferenças. Vejam como as bordas dos fragmentos de Nag Hammadi são muito mais irregulares.
3- O conteúdo do suposto fragmento parece ter sido feito sob medida, para satisfazer os anseios do grande público sobre questões que já renderam muita discussão, livros e dinheiro, a suposta relação conjugal entre Maria Madalena e Jesus, e a possibilidade de terem existido "discípulas" de Cristo. É interessante notar também que a própria Karen King é responsável por várias pesquisas, estudos e livros relativos aos temas citados; ela escreveu muito sobre Maria Madalena e sobre o papel da mulher no cristianismo antigo. Seria, portanto, uma grande coincidência que esse fragmento tenha caído justo nas mãos dela.
4- Ainda segundo o professor Painchaud, o que circulava nos corredores do Congresso Copta sobre o tal fragmento, e que definia bem a posição dos estudiosos presentes, resumia-se à seguinte frase: "It is a fake", em português, algo como "É uma falsificação".
Ainda é muito cedo para definir se de fato é uma falsificação ou não; de qualquer modo, se for esse o caso, eu arriscaria dizer, em conformidade com o que se anda dizendo no Congresso, que King não seria a autora de tal falsificação, mas a vítima (na linguagem de internet, poder-se-ia dizer que ela foi "trolada"). Como não lembrar do famoso caso do Evangelho Secreto de Marcos, que acabou com a reputação de Morton Smith.
King ainda teria sugerido que o fragmento dataria do séc. IV. Ora, é praticamente impossível datar com tanta precisão um fragmento copta. A maneira mais segura de datar um manuscrito antigo ainda é a paleografia; infelizmente, a paleografia copta ainda é muito incipiente, e a menos que o fragmento, o manuscrito ou o codex contenham uma data escrita pelo escriba, a datação é especulativa. Portanto, nada, absolutamente nada nesse momento, pode garantir que o fragmento seja efetivamente do séc. IV. Isso se considerarmos que ele é verdadeiro, o que, pelo visto, não é tão evidente assim.
Alguns meios de comunicação brasileiros publicaram reportagens sobre o fragmento dizendo que se tratava de um manuscrito do séc. II. Seguem os links abaixo:http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/reuters/2012/09/18/texto-em-pedaco-de-papiro-sugere-que-jesus-foi-casado.htm
http://noticias.terra.com.br/ciencia/noticias/0,,OI6163867-EI8147,00-Fragmento+de+texto+do+seculo+II+fala+em+mulher+de+Jesus.html
Ora, a língua copta escrita não existia antes do fim do séc. III, logo, qualquer manuscrito ou fragmento em copta é necessariamente posterior a essa data. No caso do primeiro artigo, o do portal UOL, eles corrigiram a suposta data depois de um comentário meu.
Muitos estão me perguntando sobre o conteúdo do fragmento, se isso mudaria algo nas crenças sobre Jesus. É claro que não. Mesmo se considerarmos que o fragmento é verdadeiro, trata-se de um texto tardio que não pode, de maneira alguma, ser considerado fonte fidedigna para o estudo de Jesus, sua época e dos personagens que o cercaram. Trata-se, no entanto e provavelmente, de uma tradição tardia acerca de Jesus. Mas é sempre difícil explicar isso às pessoas. Como diz o velho ditado, " a primeira impressão é a que fica". Portanto, pouco importa o que seja dito pelos especialistas - e digo isso por experiência própria, vivida nos casos do Código da Vinci e do Evangelho de Judas - a polêmica está lançada e a maioria das pessoas já tem idéia formada sobre o assunto.
Por fim, vale lembrar que a idéia de uma esposa de Jesus não é inédita na tradição apócrifa copta; outros textos, como o Evangelho de Filipe falam do assunto. Mas essa relação conjugal é sempre apresentada como uma relação espiritual, nunca como uma relação humana ou carnal.
http://www.apocryphagnostica.blogspot.ca/2012/09/o-evangelho-da-esposa-de-jesus.html
Ainda não conheço as medidas exatas do fragmento, mas uma foto dele pode ser visualizada numa reportagem do New York Times. O fragmento em questão tem oito linhas e nele podem ser lidas partes de frases atribuídas a Jesus potencialmente polêmicas como "Jesus lhes disse: 'minha esposa...'" e "ela será capaz de ser minha discípula...".
São muitas as questões a serem consideradas. Comecemos pelo anúncio feito por Karen King e a questão relativa ao fato de o manuscrito ser uma falsificação ou não.
Dois estudiosos que eu conheço muito bem, meu orientador ,Louis Painchaud, e o meu colega, Alin Suciu, estão em Roma no Congresso de Estudos Coptas e tiveram a oportunidade de assistir ao vivo à conferência da professora King. O professor Painchaud disse hoje de manha, via facebook, que King não pôde mostrar fotos do dito fragmento durante a conferência por problemas técnicos; segundo ela, seu computador havia pifado durante o vôo que a levou a Roma. Obviamente, a primeira reação dos estudiosos presentes foi pedir para ver o fragmento, o que só se tornou possível depois da conferência. A reação dos estudiosos presentes foi mais ou menos a mesma:
1- A caligrafia é extremamente peculiar e nenhum dos presentes jamais tinha visto esse tipo de escritura e letra num manuscrito copta;
2- A forma do fragmento e suas bordas não correspondem ao que se vê normalmente em um fragmento copta antigo; as bordas são muito regulares, o "corte" muito reto.
Vejam abaixo fotos de alguns fragmentos do Codex I de Nag Hammadi, do séc. IV. Comparem com a foto da reportagem do NY Times e notem as diferenças. Vejam como as bordas dos fragmentos de Nag Hammadi são muito mais irregulares.
3- O conteúdo do suposto fragmento parece ter sido feito sob medida, para satisfazer os anseios do grande público sobre questões que já renderam muita discussão, livros e dinheiro, a suposta relação conjugal entre Maria Madalena e Jesus, e a possibilidade de terem existido "discípulas" de Cristo. É interessante notar também que a própria Karen King é responsável por várias pesquisas, estudos e livros relativos aos temas citados; ela escreveu muito sobre Maria Madalena e sobre o papel da mulher no cristianismo antigo. Seria, portanto, uma grande coincidência que esse fragmento tenha caído justo nas mãos dela.
4- Ainda segundo o professor Painchaud, o que circulava nos corredores do Congresso Copta sobre o tal fragmento, e que definia bem a posição dos estudiosos presentes, resumia-se à seguinte frase: "It is a fake", em português, algo como "É uma falsificação".
Ainda é muito cedo para definir se de fato é uma falsificação ou não; de qualquer modo, se for esse o caso, eu arriscaria dizer, em conformidade com o que se anda dizendo no Congresso, que King não seria a autora de tal falsificação, mas a vítima (na linguagem de internet, poder-se-ia dizer que ela foi "trolada"). Como não lembrar do famoso caso do Evangelho Secreto de Marcos, que acabou com a reputação de Morton Smith.
King ainda teria sugerido que o fragmento dataria do séc. IV. Ora, é praticamente impossível datar com tanta precisão um fragmento copta. A maneira mais segura de datar um manuscrito antigo ainda é a paleografia; infelizmente, a paleografia copta ainda é muito incipiente, e a menos que o fragmento, o manuscrito ou o codex contenham uma data escrita pelo escriba, a datação é especulativa. Portanto, nada, absolutamente nada nesse momento, pode garantir que o fragmento seja efetivamente do séc. IV. Isso se considerarmos que ele é verdadeiro, o que, pelo visto, não é tão evidente assim.
Alguns meios de comunicação brasileiros publicaram reportagens sobre o fragmento dizendo que se tratava de um manuscrito do séc. II. Seguem os links abaixo:http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/reuters/2012/09/18/texto-em-pedaco-de-papiro-sugere-que-jesus-foi-casado.htm
http://noticias.terra.com.br/ciencia/noticias/0,,OI6163867-EI8147,00-Fragmento+de+texto+do+seculo+II+fala+em+mulher+de+Jesus.html
Ora, a língua copta escrita não existia antes do fim do séc. III, logo, qualquer manuscrito ou fragmento em copta é necessariamente posterior a essa data. No caso do primeiro artigo, o do portal UOL, eles corrigiram a suposta data depois de um comentário meu.
Muitos estão me perguntando sobre o conteúdo do fragmento, se isso mudaria algo nas crenças sobre Jesus. É claro que não. Mesmo se considerarmos que o fragmento é verdadeiro, trata-se de um texto tardio que não pode, de maneira alguma, ser considerado fonte fidedigna para o estudo de Jesus, sua época e dos personagens que o cercaram. Trata-se, no entanto e provavelmente, de uma tradição tardia acerca de Jesus. Mas é sempre difícil explicar isso às pessoas. Como diz o velho ditado, " a primeira impressão é a que fica". Portanto, pouco importa o que seja dito pelos especialistas - e digo isso por experiência própria, vivida nos casos do Código da Vinci e do Evangelho de Judas - a polêmica está lançada e a maioria das pessoas já tem idéia formada sobre o assunto.
Por fim, vale lembrar que a idéia de uma esposa de Jesus não é inédita na tradição apócrifa copta; outros textos, como o Evangelho de Filipe falam do assunto. Mas essa relação conjugal é sempre apresentada como uma relação espiritual, nunca como uma relação humana ou carnal.
http://www.apocryphagnostica.blogspot.ca/2012/09/o-evangelho-da-esposa-de-jesus.html