Há 15 anos, "Matrix" reinventava a ficção científica para o século 21
Guilherme Solari
Do UOL, em São Paulo 31/03/201412h28
Quando chegou aos cinemas em 1999, "Matrix" tirou os filmes de ficção científica do gueto nerd e os colocou no século 21 antes mesmo de seu início. Os anos que se seguiram viram uma efervescência de protagonistas de sobretudo preto e óculos escuros lutando "wire fu" e executando o "bullet time", um dos efeitos mais copiados e satirizados do cinema recente.
Não menos surpreendente, o longa dirigido pelos irmãos Larry (hoje "Lana") e Andrew Wachowski --e que completa nesta segunda-feira (31) 15 anos de lançamento-- foi inovador sem criar muita coisa propriamente. "Matrix" nada mais é que um apanhado de referências da religião, literatura, quadrinhos, anime, cinema oriental e filosofia. Tudo atirado no liquidificador dos Wachowski, filmado com exímio visual e tornado algo inédito.
"Matrix" foi um filme arriscado para os estúdios Warner Brothers. Um longa baseado no questionamento da natureza da realidade não era exatamente o que o público mainstream estava acostumado a assistir, e a mistureba poderia muito bem dar num "samba do nerd doido". E vale lembrar que o próprio Keanu Reeves havia estrelado apenas quatro anos antes em uma bomba de bilheteria com muitos elementos temáticos semelhantes a "Matrix", o filme "Johnny Mnemonic: O Cyborg do Futuro". Até indicado a uma Framboesa de Ouro de pior ator na ocasião ele foi.
"Matrix" conseguiu se desvencilhar desses perigos criando uma atmosfera própria que permeia o filme. A proposta dos Wachowski foi filmar com atores de carne e osso um anime do estilo de "Akira" e "Ghost in the Shell". Para tanto, trouxeram um coreógrafo de lutas veterano do cinema de Hong Kong para treinar o elenco para as lutas de "wire fu" --a ação cheia de acrobacias até então popular apenas no cinema asiático-- junto de um "gun fu" das câmeras lentas e pistolas duplas como nos filmes de John Woo.
Referências cyberpunk noir
Visualmente, "Matrix" se apoiou no "cyberpunk noir" de "Blade Runner: O Caçador de Andróides" e "Cidade das Sombras", longa de 1998 que também dividiu o mesmo tema da realidade como uma ilusão criada e até parte dos cenários. Nas referências literárias, "Matrix" bebeu em clássicos da ficção científica como o livro seminal do cyberpunk "Neuromancer" (onde o termo "Matrix" nasceu), na obra de Philip K. Dick, em "Alice no País das Maravilhas" ("ver até onde desce a toca do coelho", uma das frases famosas de Morpheus) e em "Édipo Rei" (a profecia do Oráculo). Dos quadrinhos, "Matrix" se "inspirou" tanto na série "Os Invisíveis" que chegou a receber acusações de plágio por parte do escritor Grant Morrison.
O filme se inspirou em diversas religiões. O conceito de que a realidade é uma ilusão criada pelos sentidos é um dos pontos centrais do budismo. A jornada do protagonista Neo lembra muito a de Jesus Cristo, um salvador escolhido que tem um "nascimento" virgem se reúne a um grupo de "apóstolos"; completo com candidatos a João Batista (Morpheus), Maria Madalena (Trinity) e Judas Iscariotes (o traidor Cypher).
A citação filosófica mais clara no filme é a da alegoria da caverna de Platão, sobre como pessoas que enxergaram apenas sombras a considerariam a realidade e não acreditariam em alguém que viu o mundo real fora da tal gruta. O livro "Simulacra and Simulation", do filósofo francês Jean Baudrillard, aparece no longa com um buraco onde Neo guarda seus programas.
Mas talvez a jogada mais genial dos Wachowski tenha sido conseguir criar um filme complexo que pode ser apreciado sem que você tenha um PHD em física quântica. Nenhuma dessas referências precisa ser compreendida para que "Matrix" funcione, mas elas permitem níveis de percepção para diferentes tipo de platéia, de quem só gosta de kung fu e frases de efeito a um público intelectual --que também gosta do mesmo kung fu e frases de efeito.
A primeira metade dos anos 2000 viu uma enxurrada de candidatos a ser "o novo 'Matrix'", ou apenas longas tentando tirar uma casquinha da popularidade do estilo do filme. As sequências "Matrix Reloaded" e "Matrix Revolutions" implodiram sob o peso da expectativa. Desde "Star Wars" a indústria cinematográfica não produzia um filme tão influente, que conseguiu popularizar temas profundos como religião, filosofia e mitologia para o grande público.
http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2014/03/31/ha-15-anos-matrix-reinventava-a-ficcao-cientifica-para-o-seculo-21.htm
Clássiquíssimo, mas as continuações são meio brochas...