[PC] A sutileza de The Binding of Isaac Isaac_kotakubr

Sutileza é a arte de transmitir grandes ideias com poucas mensagens, de evocar sensações profundas com a mais lacônica das palavras, a metonímia do tudo pelo pouco. Enquanto as mecânicas de jogo e a narrativa embutida trabalham em conjunto para fornecer aquilo que só os jogos conseguem – uma experiência emocionante que é única para cada jogador – é na sutileza dos detalhes que o jogo transcende as barreiras literárias dos meios não-interativos para se transformarem em portais, janelas que permitem que o jogador vislumbre a profundidade de novos universos inexplorados. É naquela conversa com a água-viva missionária de Mass Effect, naquela fita de cabelo abandonada de Bastion, naquele muro pichado escondido de Portal que a ilusão toma força e o jogador realmente se sente imerso em um novo mundo. A sutileza, quando bem empregada, pode até contar uma história totalmente diferente daquela narrada explicitamente, um recurso raramente encontrado nos jogos mais populares, mas largamente explorado nos jogos independentes, como The Binding of Isaac, que se permitem arriscar mais em técnicas inusitadas de narração devido ao risco de investimento notavelmente menor.

Toda a narrativa embutida do jogo consiste em duas cutscenes que, juntas, mal duram três minutos, uma paródia da lenda de Isaque e Abraão. A mãe de Isaac, uma telespectadora assídua de programas evangélicos na TV, recebe um ilapso de Deus Todo-Poderoso, que anuncia que seu filho é impuro e precisa ser purificado. Certa de sua missão divina, a Mãe incinera todos os pertences do infante, deixando-o nu. Mas isso não é o suficiente para aplacar a fúria divina, que ordena o sacrifício do infante. É então que Isaac encontra, por sorte, um alçapão que lhe permite fugir temporariamente das garras de sua mãe, mas encontra-se em uma situação talvez pior – em um porão cheio de criaturas assustadoras e deformadas, de vermes e moscas e fezes e demônios.


Desde o momento em que eu comecei a jogar até o momento em que eu abandonei o jogo (umas 40 horas depois, segundo o Steam), uma dúvida ainda persistia na minha cabeça: por que Deus declarou que Isaac era impuro? Nenhum dos onze finais do jogo responde essa questão, e não há realmente nenhuma dica explícita no resto do jogo que aponte um ponto. É possível que, sim, o jogo inteiro utilize o conto bíblico apenas como excuse plot e que todos os elementos do jogo tenham puramente papéis estéticos e funcionais, sem nenhum valor narrativo oculto, mas talvez exista algo mais. Algo sutil sob a superfície cartunesca do jogo.

Dois dos itens que você pode encontrar no porão são o “Brother Bobby” e a “Sister Maggie”. São fetos mortos que flutuam ao seu redor e disparam lágrimas contra seus inimigos. Enquanto uma demonstração da verve provocativa e deturpada de Edmund McMillan, eles funcionam muito bem, mas contam também outra história. São IRMÃOS seus que morreram no mesmo lugar em que você está, não se sabe quando ou como. É possível que eles tenham sido vítimas de um mesmo ímpeto maníaco que acometeu sua mãe, acrescentando um fator de dúvida às suas motivações. A Mãe torna-se um personagem dual, algo entre um instrumento da fé e uma assassina esquizofrênica, uma perspectiva aterrorizante mas um tanto mais consoladora. Muito mais difícil é sobrepujar a força dos Céus que a força de uma mulher louca de meia-idade.

[PC] A sutileza de The Binding of Isaac Isaac3_kotakubr

É uma resposta à indagação original – Isaac não é impuro, apenas tem uma mãe desregulada -, mas certamente não é a única. Ao completar o jogo pela décima vez, Isaac obtém um dado de seis faces, denominado “D6″ como é de costume na terminologia do RPG, dando a entender que Isaac pode ser um RPGista, e por isso faz pactos com o demônio, como dizem os evangélicos. Ou talvez nosso protagonista seja impuro porque ele de fato pactua com Satanás durante o jogo, ganhando poderes em troca de sua vida, mas existe uma explicação ainda melhor e mais interessante.

Entre as fases, o jogo exibe breves cutscenes de Isaac, deitado no chão, chorando e tendo pesadelos. Em um deles, Isaac é presenteado por sua mãe com um monte de fezes. Em outro, as demonstrações de afeto de Isaac são repelidas pela mãe, que lhe dá coices. Eles corroboram com a teoria de que a Mãe usou sua religião apenas como pretexto para cometer os crimes, ou que ao menos já não gostava dele há tempos, mas são bem menos interessantes que os outros. Há um pesadelo em que Isaac fica feliz em ganhar uma peruca loira de presente, até ser ridicularizado por outro garoto. Um pesadelo em que Isaac está colhendo flores quando é atingido por uma bola de futebol – e é ridicularizado por isso. Um pesadelo onde Isaac é surpreendido sentado na privada por seus amigos – e é ridicularizado por isso. Um pesadelo em que Isaac se vê preso em um baú de tesouro, sufocando. Isaac ataca com lágrimas, e fica mais poderoso à medida que veste peças de vestuário de sua mãe: batom, salto alto, calcinha. O chefe final de The Binding of Isaac é um útero com um bebê dentro.

Se há algo mais que The Binding of Isaac derivou da Bíblia além do enredo principal e de alguns itens, é a estrutura de parábola. The Binding of Isaac é uma parábola sobre a repressão sexual perpetrada pelo fascismo religioso. É a luta de um homossexual pacífico que se vê forçado a enfrentar a própria Mãe pelo seu direito de ser do jeito que é. É uma batalha que o leva a enfrentar a si mesmo – o embrião de Isaac – em busca de uma identidade. Cada vitória subsequente o torna mais forte, mais experiente, mais preparado, mas a batalha nunca acaba, interminável como o preconceito e a intolerância.

Isto, colegas, chama-se sutileza.

Yuri ‘Arara’ é roteirista de jogos da AeosWorks, ex-fansubber, ex-romhacker, ex-viciado em Kongregate. Engenheiro nas horas vagas. Este texto foi publicado originalmente no AeosWorks Blog, e reproduzido aqui com a autorização do autor.