Modelos para o Brasil: Índia?
texto de João Fábio Bertonha
É no mínimo complicado considerar a Índia um modelo de sucesso econômico. É um país onde 350 milhões de pessoas vivem em pobreza absoluta e 54% da população é analfabeta. Os níveis de vida são baixíssimos, a infra-estrutura está em petição de miséria e os gastos em educação e saúde são limitados. O país, além disso, apesar de ser uma democracia e de conseguir manter algum equilíbrio entre tantas etnias e religiões, vivencia contínuos conflitos étnicos e religiosos e enfrenta o espectro da superpopulação. Entre os BRICs, com certeza, é o menos desenvolvido e mesmo os chineses, hoje, são mais bem educados e com níveis de vida melhores do que os indianos.
Ainda assim, é impossível não olhar com atenção uma nação cuja economia tem crescido de forma sustentada, na faixa de 7% ao ano, nos últimos anos e que tem potencial para se tornar a segunda ou a terceira economia do planeta nas próximas décadas. Na verdade, a Índia tende realmente a se tornar uma das grandes economias do mundo, simplesmente pelo peso de seu bilhão de habitantes. Mas que o país tem apresentado bons níveis de aumento de produtividade e de crescimento econômico nos últimos anos, e que por isto tem que ser avaliado com cuidado nesta série, é um fato.
Desde a sua independência, em 1947, a Índia, socialista, adotou uma política econômica que visava à auto-suficiência. O Estado tinha uma presença fortíssima na economia, controlava importações e exportações e mantinha uma grande número de estatais ineficientes, além de subsídios e outras formas de intervenção estatal. A idéia, razoável para um país incrivelmente injusto há milhares de anos e que havia acabado de sair de uma situação colonial, era a de não depender nunca mais do exterior e melhorar a situação dos pobres aliviando a concentração de renda.
Distribuir renda via Estado pode funcionar muito bem quando se foca numa parcela da população que realmente precisa de ajuda para ir em frente ou quando há muita riqueza disponível. No caso indiano, com uma riqueza limitada (e cuja concentração em meia dúzia de famílias nunca foi afetada), o que poderia haver era a socialização da pobreza. E foi o que ocorreu.
O modelo seria até defensável se fosse provisório, aliviando a situação dos mais pobres enquanto produzia um crescimento acelerado do país. Mas não foi isso o que aconteceu. Criou-se uma burocracia imensa, que dificultava tudo, enquanto a falta de concorrência e o modelo de planejamento centralizado estimulavam a acomodação e a ineficiência.
Claro que este quadro não foi completamente negativo, com algumas conquistas sociais e estabilidade. Os níveis de crescimento também nunca foram completamente negativos, oscilando entre 3 e 4% ao ano. O problema é que este índice, que seria razoável para uma economia madura e rica, estava muito aquém do necessário para um país tão pobre e que precisava crescer rápido.
Nos últimos anos, a situação se alterou. A imensa máquina estatal indiana continua mais ou menos intacta e protecionismo, subsídios e ineficiência ainda imperam. Mas os governos indianos, desde os anos 80 e, especialmente, os 90, promoveram reformas que têm permitido à economia indiana crescer com mais vigor. A receita não é nova: abertura comercial, simplificação dos tributos e da burocracia, abertura ao investimento internacional, diminuição do papel do governo na produção de bens, etc. Como resultado, alguns setores da economia se tornaram mais dinâmicos e o “tigre indiano” começou a se mover.
A simples liberalização e a chegada do capital internacional ajudaram a aumentar a eficiência de certos setores mais tradicionais da economia indiana, como a produção de têxteis, automóveis, etc. A grande mudança, contudo, foi a transformação do país num dos grandes pólos da tecnologia da informação e de serviços no mundo, criando um setor dinâmico na economia que ajuda a levar para cima os índices gerais de crescimento.
O interessante é que a Índia só pôde entrar nesta nova fase graças à herança positiva do momento anterior. O planejamento estratégico, por exemplo, não foi abandonado. A elite indiana percebeu que não podia continuar fora do mercado globalizado e procurou o seu nicho dentro dele. Mas o país não se rendeu simplesmente ao poder do capital internacional, imaginando que apenas o mercado resolveria todos os problemas. Setores estratégicos continuaram nas mãos do governo e o Estado continua dando as diretrizes para o crescimento e o desenvolvimento nacionais.
Também foi de suma importância o investimento humano que tinha sido feito no passado. Como o país tinha uma estratégia de autonomia tecnológica e econômica, foram feitos pesados investimentos no desenvolvimento tecnológico e na formação de cientistas. Já nos anos 90, a Índia contava com cerca de dois milhões de engenheiros e cientistas, especializados em energia nuclear, biotecnologia, software e outras áreas promissoras. A liberalização econômica e o fato da parte educada do país falar inglês também foram fundamentais, claro, para que tantas empresas internacionais decidissem transferir suas operações de contabilidade, call-center e outras para o país. Mas a qualificação e o preço da mão-de-obra foram os fatores decisivos.
Foi realmente a partir dessa massa crítica que o setor de tecnologia e de serviços indiano se desenvolveu. Muitas multinacionais aproveitaram a oportunidade e foram para o país para aproveitar essa imensa mão-de-obra bem preparada e barata. A partir daí, certos setores da economia indiana sofreram um salto e alavancaram os índices de crescimento locais.
No entanto, talvez seja prudente não exagerar as conquistas indianas. Sua infra-estrutura continua precaríssima e a pobreza é endêmica. Além disso, a esmagadora maioria da população é de camponeses e, apesar de melhoras recentes na agricultura e na indústria, fato é que o boom dos serviços e da tecnologia da informação não beneficiam mais do que uma pequena parcela da população. Não mais de 2 milhões de indianos, de uma população economicamente ativa de 400 milhões, trabalham nas áreas dinâmicas da economia. Dez milhões de indianos entram no mercado de trabalho todo ano, mas as indústrias e os serviços tecnológicos não absorvem mais do que 1,5 milhão por ano, na melhor das hipóteses, o que indica as dificuldades do país em manter um crescimento homogêneo.
Não ocorreu na Índia, assim, um boom industrial com trabalho intensivo que determinou o crescimento econômico chinês e da maioria dos países asiáticos em período recente. Isso pode até ocorrer daqui para adiante, mas é duvidoso e fica a dúvida se só o mercado interno e a área tecnológica serão capazes de manter as taxas de crescimento gerais da economia no futuro.
Concluindo, a lição que podemos tirar do caso indiano é que é fundamental, para o crescimento no mundo globalizado, localizar claramente o nicho do país no mundo e investir no mesmo. Também é fundamental a presença de um setor privado forte e articulado mundialmente, mas associado a um Estado capaz de induzir e coordenar, de forma competente, o mercado. Uma sinergia que pode produzir bons resultados.
No entanto, não devemos nem de longe ter inveja da Índia. Ela está num estágio de desenvolvimento que deixamos, felizmente, para trás. A Índia, hoje, é uma sociedade agrícola e incrivelmente pobre que tenta se converter em uma sociedade industrial e moderna. Já o Brasil é um país que quase completou esta conversão e cujo desafio é consolidar este ganho e caminhar para uma nova fase, a de um país de economia diversificada, avançada e mais justa. O único grande diferencial da Índia é que ela tem um setor tecnológico de ponta e que os números indianos são tão imensos que qualquer movimento do gigante lança ondas para todos os cantos do planeta. Devemos aprender com a Índia, mas agradecermos a Deus por não sermos ela.
( JOÃO FÁBIO BERTONHA é Doutor em História, Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá/PR e Pesquisador do CNPq.)
(Tem pontos do texto que discordo em parte, mas no geral achei um texto bem explicado informativo),