Na semana passada, os responsáveis pelo maior carnaval do mundo usaram vassoura e água benta e, em um ritual tão antigo quanto o Brasil, esfregaram o chão da passarela.
Quando a folia pré-Quaresma começar no Sambódromo do Rio de Janeiro, neste fim de semana, outro ritual também estará em exposição: a lavagem de reputações. Dê uma olhada no desfile da noite de segunda-feira, no qual a escola de samba Beija-Flor, 12 vezes campeã do carnaval carioca, cantará as glórias da Guiné Equatorial.
Saudar a Mãe África é uma tradição secular no Brasil, lar da maior população de descendentes africanos das Américas. Mas ao cantar para o presidente da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, um ditador com um fraco pelo samba e uma ficha cheia de violações aos direitos humanos, a Beija-Flor colocou o gênero uma oitava acima.
Então, o que são algumas execuções sumárias e prisioneiros torturados entre amigos? Afinal de contas, custa caro colocar na avenida um grupo de mais de 4.000 dançarinos e percussionistas e uma frota de carros alegóricos em uma apresentação ao vivo com uma produção do nível da Broadway. A Beija-Flor, que recebeu R$ 10 milhões (US$ 3,5 milhões) de Obiang, foi apenas a última escola de samba a hipotecar seus paetês em troca de patrocínio.
O carnaval moderno do Brasil nasceu no pecado, décadas atrás, quando os chefes do jogo do bicho decidiram financiar o talento das favelas, onde o samba nasceu. As favelas ganharam plumas de avestruz e tambores, enquanto os bicheiros lavavam suas reputações. Acrescente fotos com prefeitos e celebridades e um poleiro de um carro alegórico de cinco andares, e o ciclo de centrifugação estava completo. Como me disse Nelson Motta, escritor especialista em música popular, “a tradição do Carnaval diz que o dinheiro não tem cor, nem origem, nem bandeira. As pessoas fazem vista grossa”.
Mas quando as festas dos blocos se transformaram em show business, a corrida pelos endinheirados se tornou intensa. As empresas de cerveja foram as pioneiras entre as companhias, combinando as vendas de bebidas com o marketing de inserção de produtos no Sambódromo, reportou Ricardo Noblat no jornal O Globo. Empresas aéreas, fabricantes de carros e siderúrgicas seguiram o exemplo.
Não demorou para que o governo entrasse em cena. As arquibancadas lotadas e a audiência televisiva global ofereceram o quadro perfeito para iniciativas políticas, sem importar quão duvidosas fossem, com o dinheiro do contribuinte.
Os estrangeiros entenderam rapidamente. Em 2006, Hugo Chávez derramou alguns petrodólares na Vila Isabel para que a escola dançasse para a ambiciosa revolução bolivariana, e a escola foi campeã. A canção-tema? “Soy Loco Por Ti, América”. Dois anos depois, Portugal entrou na festa, contratando quatro escolas de samba diferentes para cantar sambas sobre o bicentenário da chegada da monarquia ao Brasil. Nenhuma delas fez piada sobre o imperador.
O Carnaval é ótimo para esse tipo de generosidade. Se dançar para ganhar fortunas sem se importar com quem está sendo retratado tornou o concurso melhor, isso já é outra questão. “O Brasil desenvolveu a especialidade de acolher os tiranos”, disse Motta. “Isso faz com que os antigos bicheiros do carnaval pareçam apenas pitorescos”.
Para ser justo, os compositores da Beija-Flor musicaram e escreveram seu próprio samba, um emotivo panegírico ao griô -- figura mística do filósofo contador de histórias venerado em boa parte da África Ocidental. Para se garantir, contudo, Obiang examinou a letra.
http://www.infomoney.com.br/bloomberg/luxo/noticia/3862794/ditador-africano-compra-samba-enredo-carnaval-por-milhoes