Com o que temos que nos indignar?
texto de Milly
O escândalo da Petrobrás é motivo para nos deixar furiosos, claro. Mas talvez a gente tenha que se perguntar: furiosos com o que exatamente?
A primeira tentação é responder: com o Governo! Afinal, é o Governo que controla a gigantesca estatal. Há sempre inúmeros motivos justos para que nos indignemos com o Governo, com qualquer governo, esse inclusive. Mas há indignações para as quais somos conduzidos como gado.
Não tem nada mais fácil do que jogar a população contra um Governo. Um truque no qual caímos com regularidade impressionante, basta ver como passamos o dia repetindo: Nada funciona! Que país de merda! Políticos safados!
Entoando o mantra do “tudo é culpa do governo” a gente segue na batida que o poder corporativo, incluído aí o midiático, quer.
Por que é interessante que culpemos sempre o Governo?
Porque o Governo é a única instituição que podemos mudar e a única da qual conseguimos participar. Enquanto nosso foco estiver no Governo e a gente achar que mudando o Governo estaremos mudando o fundamental, tudo estará bem para o poder corporativo, que é, afinal, quem controla o mundo. E, dessa forma, o poder corporativo segue invisível e tendo seu domínio protegido.
A Petrobrás, por exemplo.
Todos os dias aparece o nome de outro diretor supostamente envolvido no esquema, esquema que, segundo as mais recentes investigações, começou durante a administração Fernando Henrique e nunca foi desmontado.
O fato de o nome de Fernando Henrique estar sendo tirado do esquemão à forceps pela mídia corporativa vale menção, mas não é sobre isso que quero falar. Quem estiver a fim de saber mais sobre como exatamente a grande imprensa faz a mágica de sumir com o nome do tucano do caso pode ler texto de Luis Nassif (link no final desse texto).
Mas até o cidadão menos atento a essa altura já coçou a cabeça e se perguntou: sabemos bastante sobre os corruptos, mas e sobre os corruptores? Quem são? Como agiram? Por quanto tempo?
Claro que as mesmas investigações que apontam nomes de diretores da estatal também levantam nomes de corruptores, ou integrantes do poder corporativo e privado, mas sobre esses não interessa falar porque isso seria jogar luz sobre o poder corporativo e a mídia, sendo um poder corporativo, atua em nome de seus pares.
E assim o esquema é trazido à tona e somos conduzidos a achar que a culpa todinha é do Governo – e, por favor, entendam, não quero isentar nenhuma administração de responsabilidade, e me parece claro que essa administração é tão culpada quanto aquelas que a antecederam, apenas tento alargar o campo do debate, sempre tão convenientemente reduzido pela mídia.
Mais especificamente querem que acreditemos que a culpa toda-todinha é do atual Governo, que a bem da verdade talvez tenha sido o único que não impediu ampla investigação a despeito da responsabilidade que evidentemente tem sobre o escândalo. Aí, instigados pelo noticiário que responsabiliza basicamente a administração Dilma pelo escândalo, podemos escutar pelas ruas pessoas clamando por democracia. “Isso não pode numa democracia!” ‘Que horror uma coisa dessas. Precisamos lutar pela manutenção democracia no Brasil!”. “O PT não é democrático, sempre soubemos disso, vai nos venezuelar a todos” etc etc etc.
E clamamos por democracia alheios ao fato de as corporações para as quais muitos de nós trabalhamos e passamos a maior parte do dia não serem nada democráticas.
O que são corporações? Empresas que pertencem a acionistas, em média 10 ou 15 majoritários com poder de decidir o corpo diretor. E, assim, essa dúzia de “donos” elege um grupo de diretores (em torno de 20, 25 usualmente) que, com poderes para decretar o que a empresa produzirá, como produzirá e como distribuirá, tem a capacidade de impactar a vida de dezenas, centenas e às vezes de milhares de pessoas. Trabalhadores, consumidores e cidadãos em geral não têm nenhuma participação nas decisões da corporação; e aos funcionários cabe fazer o que mandam, chegar na hora ou ser demitidos.
Se as corporações fossem estados seriam estados totalitários. Chomsky diz isso há décadas e agora, finalmente, começamos a ouvi-lo.
Como exatamente esse grupo de uma dúzia de diretores pode afetar a vida de milhões?
Por exemplo: se uma nova máquina é capaz de gerar mais lucro só que ao mesmo tempo vai poluir muito o ar da região quem vai decidir se ela será ou não instalada são suas excelências, os diretores.
Se uma empresa pode mudar a sede de lugar para pagar menos imposto ou para contratar mão de-obra mais barata e, assim, gerar mais lucro, mesmo que isso signifique deixar uma comunidade inteira sem emprego para trás, quem vai decidir se a mudança vai ou não acontecer será essa dúzia de diretores.
Se montar computadores do outro lado do mundo é mais barato do que nos Estados Unidos, a diretoria pode optar por mudar a fábrica para além-mar — mesmo que isso signifique ter que transportar de volta as máquinas já montadas em muitos e muitos navios e a despeito da emissão de C02 que eles provocarão, destruindo um pouco mais o planeta e nossas chances de sobreviver decentemente.
Esse tipo de decisão tem sido tomada com frequência há décadas pelas grandes corporações do mundo, sejam elas de tecnologia, roupas, serviços etc.
No capitalismo que se pratica hoje, a decisão de uma dúzia de pessoas (sempre em nome do lucro) impacta negativamente a vida de milhões. Por isso, para que nada mude, é preciso que não falemos sobre as corporações, que elas sejam invisíveis ao noticiário, e que nossa indignação fique concentrada no Governo.
Claro que não é de espantar que os diretores decidam fazer o que for preciso para maximizar o lucro já que são também eles que escolhem como o lucro será distribuído – para o bolso deles mesmos e dos acionistas, que é precisamente o que aconteceu na Sabesp, uma estatal com estrutura de corporação, ou seja: uma dúzia de acionistas e diretores decidindo nossas vidas.
Se nos tivesse sido dada a chance de, anos atrás, decidir se pegaríamos o lucro e investiríamos em infra-estrutura ou distribuiríamos a grana entre acionista o que vocês acham que teríamos escolhido para a Sabesp? Pois é. Mas não tivemos a chance de fazer nada e meia dúzia de diretores decidiram que o lucro seria distribuído e que as reformas poderiam esperar. Deu no que deu.
Detroit, uma distopia
O que aconteceu, e ainda está acontecendo em Detroit, é outra dessas notícias sobre as quais é melhor não falar.
A maior cidade do mundo a pedir falência, que tinha dois milhões de habitantes e que hoje tem 700 mil, vive hoje um enorme problema, que é também o retrato de uma distopia: 50 mil cachorros selvagens soltos pela cidade.
Quem conta a história é o professor de economia Richard Wolff, mas pouca gente além dele fala do absurdo. Mas mais interessante é a gente entender como a cidade chegou a esse ponto.
Nos anos 60 Detroit era uma das cidades mais disputadas dos Estados Unidos, o centro da indústria automotiva para onde queriam ir todos os trabalhadores americanos. Diego Rivera, o artista mexicano, foi convidado a pintar murais, bares surgiram, a cena artística ganhou cor, famílias inteiras se mudaram para Detroit em busca do sonho americano – emprego garantido pelas grandes montadoras ali sediadas e, com ele, a possibilidade de financiar a nova casa e tudo o que fosse preciso colocar dentro dela.
Até que um dia as três grandes industrias automotivas de Detroit — GM, Chrysler e Ford — sacaram que poderiam lucrar muito mais se começassem a produzir seus carros em outros lugares do mundo, onde pagassem salários e impostos menores, e disseram “tchau-tchau”.
Quem tomou a decisão? Uma dúzia de pessoas. Quem foi afetado com ela? Milhões, que tiveram que, sem emprego, sem dinheiro, sem perspectiva de novo trabalho na região abandonaram suas casas, cujos financiamentos já não podiam mais pagar, deixando para trás a antiga vida e alguns animais de estimação. E esses animais se reproduziram, e continuaram a se reproduzir, e hoje habitam casas e fábricas abandonadas.
Detroit talvez seja o retrato mais eloquente da decadência do capitalismo, mas o fato é que há pelos Estados Unidos centenas de histórias como essa que são convenientemente esquecidas pelo noticiário.
E não apenas as fábricas estão indo além-mar; a indústria de serviços, como seguradoras e centrais de atendimento, também fazem o mesmo caminho em nome do lucro e do bônus e do dividendo maior para seus acionistas, e a despeito do rastro de comunidades que deixem destruídas pelo caminho.
Historicamente, quando uma grande indústria decide fechar suas portas e zarpar há um movimento de trabalhadores que querem comprar a fábrica e administrá-la de forma comunitária, mas esses trabalhadores raramente ganham o direito de fazer isso porque, evidentemente, é um risco que eles consigam ser bem-sucedidos e, nesse caso, virem exemplo. O poder corporativo não quer dar sorte ao azar. Então, o que acontece é que o antigo empregador prefere simplesmente se mandar e deixar um rastro de destruição do que dar a chance de aquela fábrica, e o maquinário que ficará para trás, serem aproveitados.
Petrobrás, uma estatal com corpinho de corporação
Esse talvez fosse outro excelente motivo para que nos indignássemos com a Petrobrás, já que se trata de estatal com estrutura de corporação, o que tremendamente facilita a roubalheira.
Vamos supor que a Petrobrás fosse uma cooperativa nos moldes da Mondragon – a gigantesca empresa espanhola comandada por seus 85 mil funcionários sobre a qual escrevi aqui – e que tivéssemos, nós, o povo, o cidadão brasileiro, aquele para quem os anúncios na TV gritam “pode se orgulhar porque essa empresa é sua” alguma forma de decidir onde ela iria atuar, o que iria produzir, para quem iria vender.
Tendo conhecimento das dezenas de relatórios científicos que mandam que a partir de hoje deixemos 80% das reservas fósseis no solo sob pena de estarmos chegando ao que chamam de “point of no return”, aquele ponto a partir do qual não haverá mais nada que possamos fazer para salvar a vida na Terra, talvez optássemos por investir em outro tipo de energia, não? Por exemplo as geradas pelo vento, pelas marés, pelo sol ( e aí sim cabe uma crítica sonora ao Governo Dilma, pela completa falta de políticas ambientais).
Mas há aí dois problemas. O primeiro é que o mundo depende de meia dúzia de enormes corporações que vendem Petróleo, esse troço do qual somos escravos já que tudo usa Petróleo — e não é de interesse desses gigantes nem que se divulguem os assustadores relatórios, nem que se faça alarde sobre o iminente o fim do mundo. A mídia obedece.
O segundo problema é que a Petrobrás não é tão nossa como gostamos de pensar.
A despeito de o PT não ter feito nada para mudar a organização estrutural da estatal, a verdade é que ela funciona assim há muitos anos. Paulo Francis, que não se constrangia em expor os podres da gigante, em 1997 (administração FHC) foi processado por diretores da Petrobrás depois de dizer que havia ali dentro uma enorme roubalheira.
Então, claro que devemos nos indignar e exigir quer tudo seja esclarecido. Mas também devemos entender que o campo do debate é muito maior do que esse que a mídia nos impõe, e que nem o atual Governo é o solo responsável pelo estado das coisas, nem os únicos culpados estão de um lado apenas da mesa.
Na hora que percebermos que somos todos escravos do poder corporativo teremos de nos unir em busca de um novo sistema econômico. Um que seja mais democrático também no ambiente de trabalho, e que dê uma chance à vida na Terra.
Se prezamos tanto assim a democracia é hora de fazer com que ela chegue naquele lugar onde ficamos a maior parte de nossa vida adulta: o trabalho.
Aqui o texto de Nassif sobre a estratégia da mídia para esconder o nome de FH.
Para terminar, preciso dizer que tenho sido alertada por amigos e por minha mulher de estar abusando da amargura e da crítica nos textos; eles pedem mais leveza e humor. Como sempre obedeço minha mulher, termino com uma história antiga.
Maria Madalena estava para ser apedrejada por seus pecados quando Jesus gritou: “Quem nunca errou que atire a primeira pedra”. Um rapaz saiu da multidão, deu um passo à frente, pegou um tijolão e tascou na testa de Maria Madalena. Horrorizado Jesus perguntou: “Meu filho, mas o que é isso? Você nunca errou?” E o rapaz disse: “Dessa distância nunca”.
FONTE: http://blogdamilly.com/2015/02/10/com-o-que-temos-que-nos-indignar/